Justiça Climática Os Ricos Poluem, os Pobres Pagam a Fatura

Enquanto a falsa propaganda ecológica das empresas nos distrai com promessas verdes, a crise climática aprofunda as desigualdades.
A resposta não pode ser de mercado, tem de ser de justiça social.
O ar denso e quase irrespirável de mais uma onda de calor castiga quem trabalha nas ruas, nos andaimes ou nos campos do Alentejo. Dentro de casa, a história não é muito diferente para milhões.
Em apartamentos mal isolados, idosos e famílias de baixos rendimentos veem a fatura da eletricidade tornar-se um luxo impagável, transformando as suas casas em autênticas estufas. No inverno, o drama inverte-se, mas a causa é a mesma: a pobreza energética. Enquanto isso, nos noticiários e nos anúncios, as mesmas empresas que lucram com os combustíveis fósseis falam-nos de um futuro "verde", "sustentável" e "neutro em carbono".
Estas duas realidades não são coincidência. São as duas faces da mesma moeda: um sistema económico viciado no lucro a todo o custo, que privatiza os ganhos e socializa os prejuízos. A crise climática e a crise social não são problemas paralelos; são uma crise única e interligada. Compreender isto é o primeiro passo para rejeitar as falsas soluções e lutar pelas verdadeiras. É aqui que temos de saber distinguir, com clareza, entre a Justiça Climática e a falsa propaganda ecológica.
A Justiça Climática é um princípio fundamental: reconhece que os menos responsáveis pela crise climática – os mais pobres, os trabalhadores, as comunidades racializadas e os países do Sul Global – são os que mais sofrem com os seus impactos. Lutar por justiça climática é lutar por soluções que coloquem estas comunidades no centro, corrigindo as desigualdades históricas.
O marketing verde enganoso, por vezes chamado de branqueamento ecológico, é a sua antítese. É a perigosa estratégia de publicidade das grandes corporações para parecerem ambientalmente responsáveis enquanto, na sombra, continuam a ser o principal motor da destruição do planeta.
A Evidência da Injustiça:
Os Dados Não Mentem
A narrativa de que "somos todos culpados" pela crise climática é talvez a mentira mais conveniente alguma vez contada. É uma falácia que dilui a responsabilidade e protege os verdadeiros arquitetos da catástrofe. Os dados são esmagadores e provam que a crise tem uma assinatura de classe.
Quem realmente emite?
Segundo o relatório "Climate Equality: A Planet for the 99%" da Oxfam, publicado no final de 2023, o 1% mais rico do planeta é responsável por tantas emissões de gases com efeito de estufa quanto os dois terços mais pobres da humanidade, o que equivale a 5 mil milhões de pessoas. Em Portugal, a realidade segue o mesmo padrão. A pegada de carbono de um executivo que viaja de avião várias vezes por ano, vive numa moradia de luxo climatizada e tem múltiplos carros, é incomparavelmente superior à de um trabalhador que depende de transportes públicos e vive num pequeno apartamento.
Quem realmente sofre?
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Pobreza Energética:
Segundo o Observatório da Energia, mais de 20% da população portuguesa encontrava-se em situação de pobreza energética em 2022, incapaz de aquecer a casa no inverno. Estas são as mesmas pessoas que, no verão, sofrem os picos de mortalidade associados às ondas de calor. -
Trabalhadores na Linha da Frente:
Os trabalhadores da agricultura enfrentam secas que destroem colheitas e os seus meios de subsistência. Os da construção civil trabalham sob um sol abrasador com riscos acrescidos para a sua saúde. Os bombeiros enfrentam mega-incêndios cada vez mais frequentes e perigosos. São estes os corpos que sentem primeiro e com mais força os efeitos de um clima em colapso, muitas vezes em troca de salários precários. -
Saúde e Habitação:
As cheias, como as que vimos recentemente na Baixa de Algés ou em Loures, atingem de forma desproporcional os bairros construídos em zonas de risco. A poluição do ar de zonas industriais como Sines ou Estarreja afeta cronicamente a saúde respiratória dos moradores mais pobres, que não têm a opção de se mudarem para zonas "verdes".
O Grande Embuste:
A Máquina de Fumo da Propaganda Verde
Enquanto a realidade se impõe com secas e cheias, o mundo corporativo investe milhões numa realidade paralela, pintada de verde. Esta maquilhagem verde não é apenas publicidade enganosa; é uma barreira ativa à ação climática real. As suas táticas são subtis e eficazes:
- Linguagem Vaga e Oca:
Termos como "amigo do ambiente", "eco-friendly" ou "sustentável" inundam as embalagens sem qualquer significado legal ou certificação credível. São palavras que tranquilizam a consciência do consumidor, mas que não obrigam a empresa a absolutamente nada. - O Desvio do Foco:
Uma gigante do petróleo como a Galp gasta milhões em publicidade a promover os seus postos de carregamento elétrico, que representam uma fração minúscula do seu negócio, enquanto o seu lucro recorde (um lucro ajustado de 881 milhões de euros em 2022) veio esmagadoramente da extração e refinação de combustíveis fósseis. É como um barão do tabaco a patrocinar uma maratona. - Promessas para um Futuro Distante:
O compromisso de ser "neutro em carbono em 2050" é a estratégia favorita. Permite que as empresas continuem a poluir massivamente hoje, com a vaga promessa de que, algures nas próximas três décadas, a tecnologia ou mecanismos duvidosos de "compensação de carbono" (como plantar árvores noutro continente, muitas vezes sem garantias) irão magicamente anular as suas emissões.
Em Portugal, os exemplos de branqueamento ecológico são diários. Desde empresas como a EDP, que se promove como líder das renováveis enquanto continua a operar centrais a gás natural, até a outros gigantes energéticos que promovem megaprojetos com impactos ambientais e sociais devastadores, como o complexo hidroelétrico do Tâmega da Iberdrola. No setor do retalho, as grandes cadeias de supermercado promovem sacos reutilizáveis na caixa, ao mesmo tempo que os seus corredores estão repletos de produtos embalados em plástico descartável e importados através de cadeias de abastecimento com uma elevada pegada de carbono.
A Resposta é Política, Não Apenas Individual
A reciclagem, a redução do consumo de carne ou a opção pela bicicleta são gestos individuais importantes e válidos. O problema é que a narrativa neoliberal conseguiu convencer-nos de que a solução para um problema sistémico reside unicamente na soma das nossas escolhas de consumo individuais. É uma armadilha. Não podemos reciclar o nosso caminho para fora de uma crise causada por um sistema industrial e energético extrativista.
Enfrentar esta crise apresenta desafios complexos, mas a inação é a opção mais perigosa e injusta de todas. A solução tem de ser coletiva, política e estrutural. Uma verdadeira agenda de justiça climática inclui:
O Princípio do Poluidor-Pagador, a Sério
Implementar uma taxação pesada sobre os lucros extraordinários das empresas de energia para financiar a transição, começando pelo isolamento térmico de edifícios para as famílias mais pobres.
Investimento Público Massivo e Democrático
Criar uma rede de transportes públicos gratuitos, um programa de renovação energética de edifícios e investir na soberania alimentar, apoiando a agricultura local.
Soberania e Controlo Público
Garantir que setores estratégicos como a energia servem as pessoas e não os acionistas, através de uma empresa pública forte que acelere a transição para 100% renováveis.
Uma Transição Justa para os Trabalhadores
Criar programas de requalificação profissional e garantir empregos com direitos em novos setores verdes para os trabalhadores de indústrias a reconverter, como a refinaria de Sines.
A crise climática é, na sua essência, uma luta de classes.
É a luta entre os interesses de uma elite económica que lucra com a destruição e a necessidade de um futuro habitável para a esmagadora maioria da humanidade.
A escolha não é entre "salvar a economia" e "salvar o planeta".
A verdadeira escolha é entre manter um sistema que enriquece poucos à custa de todos os outros, ou construir uma economia que funcione ao serviço das pessoas e em harmonia com os limites do planeta.
A hora de agir é agora. E essa ação não passa por acreditar nos anúncios verdes das empresas que nos trouxeram até aqui. Passa por nos organizarmos, por exigirmos responsabilidades aos nossos governos e por lutarmos, coletivamente, por um futuro de verdadeira justiça social e climática.